sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

PEDAGOGIAS PIEDOSAS





Pedro Demo (2016)



Uma das vantagens do discurso que se quer científico é de ser “impiedoso, inclemente”, quando busca encarar a realidade da melhor maneira que o método faculta. Conhecimento científico não é panaceia, não só porque é um entre outros, mas também porque precisamos de todos os conhecimentos para darmos conta da realidade e sobretudo de nós mesmos, e não conseguimos nunca a contento. Precisamos até mesmo de conhecimentos contraditórios, porque assim somos: contraditórios. Nem a matemática é sistema autossuficiente, como mostrou o teorema da incompleto de Gödel nos anos 30 do século passado (Goldstein, 2006), embora se lhe reconheça validade universal no plano formal. Sabidamente nossa moral é também contraditória, porque não somos linha reta rígida, mas varas que envergam para todos os lados, dependendo da conveniência. Por isso, moral humana é, substancialmente, moralista (acoberta ânsias de poder, mais de que retidão, que, aliás, nunca é bem reta) (Ariely, 2010; 2012. Kurzban, 2010. Haidt, 2012).
Ciência bem intencionada, digamos aquela que se compromete em fazer análise distanciada o suficiente para atingir certa objetividade nunca plenamente factível, perscruta seu “objeto” até as entranhas, estripa-o, desconsiderando as aparências, o senso comum, o que já se conhece, para revolver o que está por baixo das cinzas. Tomando o intento de Freire com respeito à opressão, “ler a realidade” significava ostensivamente estripar o fenômeno, desconstruir, romper em pedaços, para ver lá dentro, bem lá dentro e descobrir que é dinâmica historicamente causada, mantida, pervertida, podendo ser mudada, desde que o oprimido se faça protagonista de sua emancipação (1997; 2006). Ler a realidade é, por isso, uma empreitada “científica”, mesmo sendo ciência montagem tremendamente ambígua. Quando pedimos pensamento crítico, aludimos a este olhar exigente, severo que não se basta com observação ligeira, mas penetra nas coisas sem dó. O oprimido precisa saber questionar a opressão, desvendando suas artimanhas, pretensões inconfessas e ocultas, malandragens históricas, golpes em série, para flagrar que a realidade de fundo não é da superficial, nem o que a elite alega, ou no que o senso comum acredita.



I. PEDAGOGIA DE QUE O OPRIMIDO PRECISA 



Entre as pieguices da educação está a inabilidade de diagnóstico do atual sistema de ensino. Disto resultou um PNE lunático, que se apregoa inovador, mantendo as velharias substanciais de sempre (Demo, 2016). Teremos o mesmo professor, a mesma aula, as mesmas instituições, sobretudo a mesma pedagogia. Os estudantes acorrem à escola/universidade para ouvir aulas, fazer provas e engolir conteúdos. Os dados indicam que isto faleceu há tempo - a série histórica (desde 1995 pelo menos) sugere que estamos retrocedendo nos anos finais e ensino médio e ANA também insinua que alfabetização é uma piada. De novo, o Pnaic quer mudar a alfabetização mantendo o mesmo alfabetizador, a mesma escola, o mesmo ensino, a mesma aula. Uma peça de maior mau gosto foi aumentar o ensino fundamental para 9 anos - até hoje não sabemos qual a serventia… Mudança totalmente inútil, embora pudesse ser útil, caso fôssemos capazes de diagnóstico mais profissional. O MEC é casa da água benta - curam-se as chagas com placebos que até deus duvida, fazendo de conta que o sistema está resfriado apenas. Está canceroso, e com metástase avançada.
Assim, qualquer proposta de mudança  precisa levar em conta que não cabe mais apostar neste sistema de ensino, porque é uma fraude oficializada. Se queremos mudar o ensino médio, precisamos mudar o sistema de ensino por inteiro, de alto a baixo, incluindo as pedagogias e licenciaturas. Mantendo a mesma escola, o mesmo professor, a mesma aula, a mesma pedagogia e licenciatura, estamos, de novo e sempre, enganando a população. Quando nos damos conta do déficit de professores de física (sequer 20% têm curso de física), não adianta apenas promover incentivos para que mais gente faça o curso; é imprescindível reinventar o curso, porque o atual licenciado de física, não tendo aprendido minimamente, não pode ensinar nada, nem o estudante aprender. Não é suficiente aumentar licenciados em física, precisamos mesmo é de “outro" licenciado, mexendo profundamente na estrutura universitária.
Se tivermos a coragem de colocar a questão singelamente - de qual escola a população precisa - a resposta será taxativamente que não é esta escola que temos e que o MEC mantém a ferro e fogo. A escola de que os mais pobres precisam carece enfrentar desafios urgentes e ingentes tais como:
a) não pode ser uma escola pobre para o pobre, como é o caso hoje; quando apenas um resíduo aprende matemática no ensino médio, esta catástrofe decepa os mais pobres, privando-os das oportunidades pela vida toda subsequente; fica fora do acesso às universidade federais públicas e gratuitas e congêneres, dos melhores empregos, dos melhores concursos e vestibulares, etc.; não faz sentido universalizar para baixo, como é regra entre nós, prendendo a população geral numa arapuca escolar da qual não tem chance de se livrar;
b) não pode ser a mesma escola, porque confirma o status quo indefinidamente, ou seja, não tem chance alguma de recuperar o atraso enorme em que os mais pobres estão enredados; os mais pobres em geral possuem vocabulário limitado pelo próprio ambiente familiar, não contam em casa com uma família atenta, apoios didáticos e informáticos, informação atualizada, acesso à mídia mais avançada, sem falar em comprometimentos no nível da saúde, higiene, alimentação, sanitário etc.;
c) precisa ser uma escola flagrantemente “superior" que lhe faculte arrancar com ímpeto inusitado, retirá-lo do atraso e postá-lo na dianteira das oportunidades, garantindo, não só as “mesmas" oportunidades, mas resultados “superiores”; esta tentativa aparece em propostas “clássicas” como a Escola de Tempo Integral (Darcy Ribeiro, com colaboração de Pulo Freire), que hoje tem a nomenclatura de Escola Integral.
No entanto, até ao momento a Escola Integral em suas várias nomenclaturas é a “mesma escola”, assim como a recente “reforma do ensino médio” é o mesmo xarope de sempre, desviando a atenção para a questão curricular, que, sendo problema também, nem de longe é o problema mais agudo e urgente. Há que se ter em conta que a escola púbica acaba sendo a única chance emancipatória para os estudantes mais carentes, mas que, na prática, se torna o cadafalso insuperável. Pode facilmente permanecer 12 anos no sistema, teria 12 anos de estudo, que não resultam em mais que 2 ou 3, mal e porcamente. A miséria avassaladora da “progressão automática” que contamina o sistema de alto a baixo começa com a proposta de alfabetização em até três anos, e que depois não se completa, confundindo “idade certa” com “dose certa”. Naturalmente que esta “alfabetização” vale apenas para os mais pobres; os outros tratam de alfabetizar-se no pré-escolar. Segundo ANA, talvez metade se alfabetiza em três anos; em alguns estados ainda faltam mais de 80%. É, pois, uma escola que “sacaneia” o pobre flagrantemente.
Falando a verdade, não temos a escola de que o oprimido precisa; temos um arremedo contraproducente. Mesmo assim a consideramos constitucionalmente obrigatória e inclusiva. Achamos que, metendo deficientes, índios, negros e outras “minorias” nesta arapuca, estamos lhes dando a chance da vida para “se incluírem”. Coisas da “pátria educadora”, totalmente pelo avesso. Insistimos que filhos de beneficiários do Bolsa-Família devem frequentar escola - algo totalmente redundante - mas, ao final, sequer vale a pena. Índio que se preza não aceitaria esta escola que, para usar expressão de Popkewitz, é “efeito de poder” (2001) - sob um discurso fátuo de inclusão manobra-se a exclusão mais abjeta. No entanto, uma das faces mais brilhantes da proposta finlandesa foi garantir para a população em geral uma escola pública (o sistema é exclusivamente público e gratuito), onde mais de 90% aprendem bem - é “normal”, aprender; entre nós é exceção. Alfabetizar uma criança na primeira hora virou enigma, missão impossível, tarefa insuperável, a ponto de demorar três anos, para nunca mais se completar. Ficou normal que praticamente ninguém aprenda matemática - só falta virar a marca registrada desta pátria educadora extinguir matemática! Esta cena lembra o filme Titanic, onde se mostra uma orquestra tocando furiosamente, enquanto o barco se afundava. Atolado em dados que ele próprio produz, veementemente indicativos de que está afundando, o MEC prefere continuar tocando sua charanga de sempre. Só sai daí coisa requentada, velha, superada, porque, sob o peso de uma história institucional decadente,  tal qual a escola, se reproduz.
A proposta das Federais esconde a mesma arapuca, considerada “clássica”. Foram concebidas públicas e gratuitas para que “todos" pudessem ter acesso - nada mais digno e justo. No entanto, foram assaltadas pelos mais ricos, com alusão esperta de “mérito" – são eles que passam nos melhores vestibulares, claro - a ponto de ser hoje típico botim, uma reserva de mercado. Cursos de medicina de regiões mais pobres são ocupados sistematicamente por “estrangeiros" que ocupam as vagas, porque os “nativos" não conseguem concorrer. Em si, elas oferecem as “mesmas" oportunidades, com os mesmos “exames”. Esconde-se, porém, que, se todos fazem o mesmo exame, todos têm pontos de partida dissimilares, sobretudo a maioria tem resultados muito inferiores. Os mais pobres terão de contentar-se com a oferta privada, de nível inferior, e ainda pagar por ela. É a “justiça" de um sistema de ensino intestinamente perverso.



II. NÃO APENAS OPORTUNIDADE IGUAL, MAS RESULTADOS SUPERIORES



Continuamos mantendo o discurso completamente capenga das “mesmas oportunidades para todos”, a despeito das pesquisa que indicam ser insuficiente flagrantemente (Boykin & Noguera, 2011). Os erros são palmares, porque as políticas educacionais não são minimamente justas e honestas com as populações que ficaram para trás. Ocorre que os oprimidos não precisam apenas das mesmas oportunidades; precisam de oportunidades bem superiores, em particular resultados frontalmente diferenciados. Tomando um exemplo do esporte: não cabe, para fazer um competição de corrida de obstáculos, digamos, de 200 m, colocar um jovem e um velho na mesma pista, com a mesma distância, com o mesmo uniforme, com as mesmas regras – a oportunidade parece igual, mas os dois não são. Esquecem-se as diferenças gritantes, que não permitem ao velho ter o mesmo desempenho. Sempre cometemos esta barbaridade política quando, aplicando os mesmos testes padronizados para todos, achamos estar fazendo justiça para todos, ignorando que os pontos de partida são, em geral, abusivamente diferentes. Temos esta perversidade nos vestibulares para as melhores universidades do país – todos fazem a “mesma” prova, com as mesmas regras, mas as condições de cada candidato são muito diferentes. Quem fez escola pública rebaixada não pode ter a mesma condição de quem fez escola privada e vem com um “cursinho” de ponta para a prova. Para cúmulo da perfídia, fala-se de “mérito” – a prova, em si, testaria o mérito de cada estudante, mas esconde-se que o determinante maior deste mérito, não é “mérito intelectual” (que poderíamos certamente engolir), mas “mérito” socioeconômico e cultural (ou seja, “bolso” familiar – superioridade socioeconômica em especial). Assim, tornou-se comum que, em regiões menos desenvolvidas, o curso de medicina da Federal é ocupado, por vezes, em mais de 80%, por gente de fora, que vem naturalmente bem mais “preparada”. Mérito?
Então vamos combinar: os mais pobres precisam de “resultados significativamente superiores”, não só das mesmas oportunidades. Pensava-se nisso quando Darcy Ribeiro e Paulo Freire tocavam a ETI (CIEPs) no Rio de Janeiro no começo dos 1990. Os resultados não foram os esperados e a experiência acabou minguando. Retornou como força no governo Collor (CAICs), com arquitetura própria, mas não vingou também. Retoma-se agora sob a nomenclatura de Escola Integral, mas também com proposta totalmente desvirtuada no programa Mais Educação, por exemplo, que estende uma escola péssima de quatro horas para oito, ou seja, tornando duas vezes péssima. Como renitente ou empedernido não se emenda, veio agora o Novo Mais Educação, com algumas firulas novas, mas no mesmo “espírito” instrucionista vigente (Demo, 2016a). Não vou repetir aqui dados sobre aprendizado adequado de matemática no país, em especial no ensino médio (Demo, 2016b), que indicam estar matemática – sinceramente – “em extinção”. Naturalmente, quem menos tem acesso ao aprendizado adequado de matemática são os mais pobres, que são empurrados via progressão automática para a vida sem preparação minimamente apropriada. Não se alfabetizam minimamente, não aprendem nada na condição de autor, e terminam o curso completamente fraudados, constitucionalmente.
Se aceitarmos o desafio de que os mais pobres precisam de resultados significativamente superiores, ou seja, precisam aprender muito mais e muito melhor, precisamente para terem oportunidades similares, a escola tem de mudar radicalmente, deixando para trás a política atual completamente alienada. Para contextualizar tamanho desafio – quase milagre – cumpre analisar as condições concretas dos mais pobres quando chegam à escola pública. Primeiro, comparativamente, abrigam um déficit humilhante em todos os sentidos: i) não possuem em casa apoio suficiente, em parte porque os pais podem ser analfabetos ou quase, ou também porque não conseguem acompanhar os filhos na escola, ou também porque não têm interesse; enquanto isso o menino rico tem uma retaguarda familiar quase sempre combativa a seu favor; os mais ricos podem matricular-se em estabelecimentos privados, quase sempre de melhor desempenho (mesmo que o Ideb de 2015 mostre que a escola privada seja a mais problemática, pedagogicamente falando); ii) um dos déficits é o vocabulário que ele traz para a escola – enquanto o menino rico em geral fala em casa um português mais escorreito, o outro fala o linguajar popular, que, não sendo em nada “inferior”, não é o “dominante” (Demo, 2010); é questão chave porque a fala mais escorreita já introduz conotações da linguagem mais formal, abstrata, analítica, modelar, fundamental para elaborar oportunidades mais definidas na sociedade/economia do conhecimento; iii) o menino rico facilmente tem em casa um cardápio razoável de apoios didáticos, como computador e internet, enciclopédias, livros e revistas, jornais, provavelmente informa-se melhor via TV, por exemplo (noticiários e informativos, shows ligados à pesquisa acadêmica etc.); o menino pobre pode não ter nada disso, a não ser uma TV para ver novela da Globo ou coisa parecida; iv) o menino rico pode ser mais facilmente “puxado” pelos pais e ambiente familiar em conversas mais analíticas, em comportamentos mais bem socializados, em comunicação mais cuidadosa; o menino pobre fica longe disso, por conta de viver a vida no limite das possibilidades; v) o menino rico facilmente tem apoio em termos de crescimento físico, desenvolvimento intelectual e emocional, ambiente sanitário e higiênico etc.; aprende mais facilmente a cuidar-se nesta parte; enquanto isso, o menino pobre pode não tem qualquer condição de curtir estas dimensões por conta da pobreza, vivendo em situação de carências extremadas, alimentando-se precariamente, não tendo acompanhamento médico, pode sequer ter as vacinas em dia; vi) o menino rico pode vivenciar ambiente de muita motivação positiva intelectual, emocional, social e cultural (pode visitar museus científicos, participar de eventos culturais importantes, como uma orquestra sinfônica, ou ir ao teatro, viajar para o exterior etc.), enquanto o menino pobre não consegue elevar seu “capital” cultural, por conta das misérias da vida.
Assim, este menino chega à escola precisando de “tudo”, literalmente. Já isto indica que não pode ser a mesma escola, porque não tem qualquer condição de encarar os atrasos clamorosos. Mas o desafio é bem concreto e acerbo: o estudante começa com atraso astronômico e mesmo assim precisa chegar na frente! Como? Podemos aqui mesmo desanimar, já, usando a metáfora do esporte: não dá para chegar antes numa corrida de mil metros, quando um tem uma dianteira de 500 m; sair com 500 m de atraso e pretender chegar na frete, há que “voar” – a pé é que não dá! Embora pareça grotesco este cenário, é o real, duríssimo. Vamos tomar analisar rapidamente uma iniciativa que, aparentemente, queria enfrentar isso: o Pnaic. Ao inventar a “idade certa” para a alfabetização escolar, o MEC tentou ser “realista” – os estudantes mais pobres precisariam em média de três anos. Não seria difícil justificar isso, por conta dos déficits que acabei de descrever preliminarmente. Sabemos, pelas avaliações (ANA, principalmente) (Demo, 2015), porém, que é proposta inócua, teórica e praticamente equivocada, contribuindo frontalmente para encalacrar os mais pobres – se fôssemos usar a crítica de Popkewitz, Pnaic é típica política como “efeito de poder”. Primeiro, esta “idade certa” só vale para os mais pobres; os outros já começam no pré-escolar. Quando alguns defendem que “educação científica” deveria começar no pré-escolar (com quatro anos de idade) (Linn & Eylon, 2011), cabe perguntar se a idade estaria “errada”? Ridículo; para o menino rico, toda idade serve, porque alfabetização nunca termina, se for bem posta educacionalmente falando; só menino pobre tem prazo e que, por sinal, nunca termina – segundo ANA, mais ou menos metade se alfabetiza após três anos; em alguns estados, faltam ainda mais de 80%... Segundo, a preocupação seria com “dose certa” – o que caberia trabalhar com uma criança de quatro anos, ou de seis, e sobretudo como, pedagogicamente falando, o que pede um professor à altura e que, entre nós, facilmente não existe. Assim, quem precisa de três anos não é a criança pobre, é o alfabetizador “pobre”. Terceiro, visivelmente a proposta oficial é coisa pobre para o pobre, algo que qualquer menino rico não quer para si. Assim, ao invés de oferecer para o mais pobre um programa significativamente superior, empurra-se uma carroça velha, porque pobre só pode/deve andar de carroça velha. Não existe o compromisso de puxar para cima, oferecer oportunidade verdadeiramente alternativa, superar déficits clamorosos, garantir ambiente efetivo educacional. Ao contrário, é o mesmo esquema de sempre, a mesma escola, o mesmo alfabetizador, a mesma pedagogia, a mesma aula... Porcaria.
Permito-me contar uma experiência que tive em Belém em meados dos 1990, quando Hélio Gueiros era Prefeito e Therezinha Gueiros secretaria de educação. Entre outras inovações, erigiu-se a Escola Bosque, com arquitetura primorosa enfiada na floresta da Ilha de Mosqueiro, muito caprichada em termos de equipamentos, espaços, locais de estudo, biblioteca etc. Tinha também a função de ser a cabeça do sistema municipal de educação ambiental. Tomou-se o cuidado de não cair na esparrela de oferecer ao pobre coisa pobre, tanto que se conseguiu, com muito malabarismo do prefeito, salário diferenciado para os professores. Na próxima eleição, ganhou o PT (prefeito Edmilson), que logo estigmatizou a escola como elitista, resultando disso seu entupimento de estudantes, ocupação dos espaços alternativos, degradação dos equipamentos etc. Ao invés de erigir outras escolas desse porte e qualidade para outras comunidades pobres, achou-se mais “justo” rebaixar a escola, já que pobre só pode estudar em escola ruim. O mais pobre não é “puxado” para um escola que lhe daria resultados superiores; ao contrário, a escola é degradada para caber na pobreza. A Escola está lá, mas nunca vingou; é escola qualquer, aquela que cabe aos mais pobres!



III. INCLUSÃO PELO AVESSO



Parece estranho que se diga ser inclusiva a escola que temos, mas é política pública típica. É também obrigatória, pois imagina-se que estamos garantindo à população real oportunidade de melhorar na vida. Esta pretensão está entre as mais ridículas da nossa história, onde nunca conseguimos “universalizar” para cima, ou seja, na visão de Vygotsky da zona do desenvolvimento proximal, facultar ao estudante sempre novos desafios, para além do que já faz sozinho. Nossas “universalizações” são tipicamente para baixo, como o SUS (quem pode, foge), como Segurança Pública (quem pode, foge), escola pública (quem pode, foge). O reverso, porém, vale a pleno vapor: quando alguma instituição pública detém qualidade superior, mesmo sendo pública e gratuita, não vai para os mais necessitados; é logo botim dos mais ricos (Federais, por exemplo). Isto denota que nunca soubemos trabalhar a noção de inclusão, mesmo em partidos que se querem de esquerda, que não foram além do Bolsa-Família: embora seja programa altaneiro, pratica uma inclusão marginal, mantendo o pobre dentro, mas lá bem na margem, que, diga-se de passagem, “é seu lugar”! Continua tendo seu destino em mãos alheias, embora tenha agora um “opressor” provavelmente mais benigno.
Quando usamos (em vão) no nome de Paulo Freire e sobretudo quando aludimos a necessidade de o oprimido se emancipar (“lendo a realidade”), cometemos quase sempre curtos-circuitos toscos, entre eles:
a) emancipar exige protagonismo de quem pretende se emancipar; não pode ser apenas beneficiário (como é no Bolsa-Família), porque emancipação “concedida”, “dada”, “monitorada”, ou “imposta” é fraude (Mezirow & Associates, 2000. Taylor & Cranton, 2012); “ler a realidade” implica a competência de tomar o destino em suas mãos (até onde possível), destruir a opressão e montar rota alternativa em condições democráticas e republicanas;
b) não faz sentido incluir-se na margem, ou seja, a inclusão feita adequadamente acarreta mudanças estruturais no sistema, que sempre evitamos – precisamente o Bolsa-Família acomoda o pobre, sem pedir mudanças estruturais; entre as mudanças estruturais mais profundas está a necessidade de resultados superiores na escola em favor dos oprimidos; é uma mentira deslavada que nossa escola seja inclusiva, como é dizer que o Bolsa-Família sana a questão da pobreza ou que, de repente, a maioria dos pobres virou classe média ou coisa parecida; 
c) esta escola que temos não “inclui”, porque seu desempenho é desastroso como regra, e decrescente; é um acinte achar que os índios, entrando para esta escola, tenham uma oportunidade fundamental de vida, a ponto de ser “obrigatória”; se o índio soubesse “ler a realidade”, recusaria esta escola; retomando a velha sociologia da educação, o sistema atual de ensino confirma/exacerba ostensivamente as desigualdades sociais (Bourdieu & Passeron, 1975) ou representa nitidamente o questionamento clássico de Frigotto: a “produtividade da escola improdutiva” (1989); para lembrar uma expressão forte de Au (2009): a escola é “desigual em seu design”;
d) o erro mais grosseiro, entretanto, é continuar apostando neste sistema de ensino totalmente falido, onde aprendizagem é excepcional, se tanto; empurramos a população para uma escola que lhe vale sobretudo como cadafalso, onde vai se esfolar viva, para, após 12 anos de escola, terminar o ensino médio sem saber matemática; ao invés de ter 12 anos de estudo, tem alguns, mal e porcamente; este estudante foi “desincluído”, ou incluído mais ainda na miséria em que sempre esteve.
Se estamos realmente interessados em incluir o oprimido, precisamos tomar providências à altura do diagnóstico que acena com um sistema completamente decadente e injusto escolar, até mesmo na esfera privada (como diz o Ideb de 2015) (Demo, 2016c) e buscar condições de oferta extremamente alternativa, muitíssimo além de programas como Bolsa-Família ou Mais Educação. Falando a sério, como daríamos conta de uma aluno xucro (no sentido de seu despreparo quando chega no primeiro dia à escola, vindo da periferia mais pobre)? Primeiro, o estudante precisa ser tomado a sério, em todo seu “despreparo”. Um exemplo típico é uma escola para “refugiados” na Finlândia – se a escola não tomar a sério o refugiado, digamos um afegão pobre, fingindo que é um “finlandês”, não pode dar certo! Esta escola precisa estar à altura da necessidade do afegão pobre, começando do começo, do chão em que a criança está. Mas isto é apenas o começo. O mais duro é, partindo de condições tão adversas, garantir ao afegão a oportunidade de resultados superiores, para que seja incluído, não na margem como pária, mas no centro do sistema, onde deveriam estar todos, se não mentíssemos tanto!
Assim, de que precisa um índio, um deficiente? Não é dessa escola. Esta escola é feita para dar aula, fazer prova e engolir conteúdo repassado. Não tem nada a ver com as necessidades reais dos oprimidos; ao contrário, é sua ruína. Se dizemos que pobre, entrando no sistema prisional, faz pós-graduação no crime, não é diferente do pobre que vai para nossa escola: faz pós em analfabetismo. Depois nos admiramos com as desigualdades ignominiosas que nos cercam na república, por exemplo, com as aposentadorias predatórias dos funcionários públicos, dos salários de juízes (quase todos acima do teto, porque se julgam acima da lei), com a farra dos políticos, dos supersalários públicos que descarados acham “meritórios”,  etc. Tudo se planta e replanta numa escola abjeta, onde o excluído tem de aprender que nunca vai passar de excluído! A escola sempre teve este lado problemático, como mostra a “sociologia clássica da educação”, em alguns países assumido ostensivamente como nos Estados Unidos, quando se usou (e usa) a escola pública para “domesticar” os imigrantes – a função maior não era aprender, emancipar-se, mas “socializar-se”. Educar implica também, nas entrelinhas, ou nas linhas todas, manipular comportamentos alheios, que é o que fazemos deslavadamente quando metemos índios ou deficientes nesta escola ensandecida. Foucault coloca escola no sistema prisional, não por acaso... (1977).
A noção de Escola Integral (de tempo integral) sempre teve alguma pretensão nesta direção, por mais que nunca tenha vingado minimamente. Deixar o menino pobre na escola poderia ter muitos efeitos benéficos, também assistenciais (melhor ficar na escola que perdido na rua), poderia receber atenção redobrada, poderia habituar-se a uma ambiente positivo de aprendizagem, leitura, estudo, pesquisa, elaboração... Como, porém, não temos cabeça bem-feita (Morin, 2003), quando aumentamos o ensino fundamental de oito para nove anos, apenas impusemos aos estudantes mais um ano inútil – observando os anos finais, os dados são tristes. Não partimos de um diagnóstico decente, mas de “princípios” caducos didáticos que apostam cegamente em tempo maior para nada na escola. Conseguimos piorar... Haja “inclusão”!



CONCLUSÃO



A maior pieguice da atual política educacional é prometer mudanças no mesmo sistema de ensino, conservando o mesmo professor, a mesma escola, a mesma aula, a mesma pedagogia... Os dados indicam veementemente que estamos nos suicidando, mas, como no Titanic, a orquestra toca ainda mais estridente para esquecer do colapso iminente. O país vai ficando para trás, lembrando de um programa americano chamado “No Child Left Behind Act” (Nenhuma criança deixada para trás), formulado por W. Bush (2001) – voltado para restaurar as oportunidades que estudantes americanos não alcançavam em testes internacionais (em especial no PISA). Mas cometeu o mesmo erro crasso recorrente: imaginou que o mesmo sistema de ensino que exclui as maiorias poderia, num gesto de arrependimento tocante, fazer a inclusão, apelando, entre outras coisas, para privatizações de escolas públicas (Lubienski & Lubienski, 2013. Ravitch, 2013)... O questionamento da escola pública – certamente sempre cabível e mesmo necessário – não pode redundar em seu fechamento, mas não sua reinvenção, porque a população só pode frequentar escola pública gratuita. O Ideb mostra que a escola mais duvidosa hoje é a privada. A “criança deixada para trás” precisa de outra escola.

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