Pedro Demo (2016)
Uma das vantagens do discurso que se quer científico é de ser
“impiedoso, inclemente”, quando busca encarar a realidade da melhor maneira que
o método faculta. Conhecimento científico não é panaceia, não só porque é um
entre outros, mas também porque precisamos de todos os conhecimentos para
darmos conta da realidade e sobretudo de nós mesmos, e não conseguimos nunca a
contento. Precisamos até mesmo de conhecimentos contraditórios, porque assim
somos: contraditórios. Nem a matemática é sistema autossuficiente, como mostrou
o teorema da incompleto de Gödel nos anos 30 do século passado (Goldstein,
2006), embora se lhe reconheça validade universal no plano formal. Sabidamente
nossa moral é também contraditória, porque não somos linha reta rígida, mas
varas que envergam para todos os lados, dependendo da conveniência. Por isso,
moral humana é, substancialmente, moralista (acoberta ânsias de poder, mais de
que retidão, que, aliás, nunca é bem reta) (Ariely, 2010; 2012. Kurzban, 2010.
Haidt, 2012).
Ciência bem intencionada, digamos aquela que se compromete em
fazer análise distanciada o suficiente para atingir certa objetividade nunca
plenamente factível, perscruta seu “objeto” até as entranhas, estripa-o,
desconsiderando as aparências, o senso comum, o que já se conhece, para
revolver o que está por baixo das cinzas. Tomando o intento de Freire com
respeito à opressão, “ler a realidade” significava ostensivamente estripar o
fenômeno, desconstruir, romper em pedaços, para ver lá dentro, bem lá dentro e
descobrir que é dinâmica historicamente causada, mantida, pervertida, podendo
ser mudada, desde que o oprimido se faça protagonista de sua emancipação (1997;
2006). Ler a realidade é, por isso, uma empreitada “científica”, mesmo sendo
ciência montagem tremendamente ambígua. Quando pedimos pensamento crítico,
aludimos a este olhar exigente, severo que não se basta com observação ligeira,
mas penetra nas coisas sem dó. O oprimido precisa saber questionar a opressão,
desvendando suas artimanhas, pretensões inconfessas e ocultas, malandragens
históricas, golpes em série, para flagrar que a realidade de fundo não é da
superficial, nem o que a elite alega, ou no que o senso comum acredita.
I. PEDAGOGIA
DE QUE O OPRIMIDO PRECISA
Entre as pieguices da educação está a inabilidade de diagnóstico
do atual sistema de ensino. Disto resultou um PNE lunático, que se apregoa
inovador, mantendo as velharias substanciais de sempre (Demo, 2016). Teremos o
mesmo professor, a mesma aula, as mesmas instituições, sobretudo a mesma pedagogia.
Os estudantes acorrem à escola/universidade para ouvir aulas, fazer provas e
engolir conteúdos. Os dados indicam que isto faleceu há tempo - a série
histórica (desde 1995 pelo menos) sugere que estamos retrocedendo nos anos
finais e ensino médio e ANA também insinua que alfabetização é uma piada. De
novo, o Pnaic quer mudar a alfabetização mantendo o mesmo alfabetizador, a
mesma escola, o mesmo ensino, a mesma aula. Uma peça de maior mau gosto foi aumentar
o ensino fundamental para 9 anos - até hoje não sabemos qual a serventia…
Mudança totalmente inútil, embora pudesse ser útil, caso fôssemos capazes de
diagnóstico mais profissional. O MEC é casa da água benta - curam-se as chagas
com placebos que até deus duvida, fazendo de conta que o sistema está resfriado
apenas. Está canceroso, e com metástase avançada.
Assim, qualquer proposta de mudança precisa levar em conta que não cabe mais
apostar neste sistema de ensino, porque é uma fraude oficializada. Se queremos
mudar o ensino médio, precisamos mudar o sistema de ensino por inteiro, de alto
a baixo, incluindo as pedagogias e licenciaturas. Mantendo a mesma escola, o
mesmo professor, a mesma aula, a mesma pedagogia e licenciatura, estamos, de
novo e sempre, enganando a população. Quando nos damos conta do déficit de
professores de física (sequer 20% têm curso de física), não adianta apenas
promover incentivos para que mais gente faça o curso; é imprescindível reinventar o curso, porque o atual
licenciado de física, não tendo aprendido minimamente, não pode ensinar nada,
nem o estudante aprender. Não é suficiente aumentar licenciados em física,
precisamos mesmo é de “outro" licenciado, mexendo profundamente na
estrutura universitária.
Se tivermos a coragem de colocar a questão singelamente - de qual escola a população precisa - a
resposta será taxativamente que não é esta escola que temos e que o MEC mantém
a ferro e fogo. A escola de que os mais pobres precisam carece enfrentar
desafios urgentes e ingentes tais como:
a) não pode ser uma escola pobre para o pobre, como é o caso
hoje; quando apenas um resíduo aprende matemática no ensino médio, esta
catástrofe decepa os mais pobres, privando-os das oportunidades pela vida toda
subsequente; fica fora do acesso às universidade federais públicas e gratuitas
e congêneres, dos melhores empregos, dos melhores concursos e vestibulares,
etc.; não faz sentido universalizar para baixo, como é regra entre nós, prendendo
a população geral numa arapuca escolar da qual não tem chance de se livrar;
b) não pode ser a mesma escola, porque confirma o status quo
indefinidamente, ou seja, não tem chance alguma de recuperar o atraso enorme em
que os mais pobres estão enredados; os mais pobres em geral possuem vocabulário
limitado pelo próprio ambiente familiar, não contam em casa com uma família
atenta, apoios didáticos e informáticos, informação atualizada, acesso à mídia
mais avançada, sem falar em comprometimentos no nível da saúde, higiene,
alimentação, sanitário etc.;
c) precisa ser uma escola flagrantemente “superior" que lhe
faculte arrancar com ímpeto inusitado, retirá-lo do atraso e postá-lo na
dianteira das oportunidades, garantindo, não só as “mesmas" oportunidades,
mas resultados “superiores”; esta tentativa aparece em propostas “clássicas”
como a Escola de Tempo Integral (Darcy Ribeiro, com colaboração de Pulo
Freire), que hoje tem a nomenclatura de Escola Integral.
No entanto, até ao momento a Escola Integral em suas várias
nomenclaturas é a “mesma escola”, assim como a recente “reforma do ensino
médio” é o mesmo xarope de sempre, desviando a atenção para a questão
curricular, que, sendo problema também, nem de longe é o problema mais agudo e
urgente. Há que se ter em conta que a escola púbica acaba sendo a única chance
emancipatória para os estudantes mais carentes, mas que, na prática, se torna o
cadafalso insuperável. Pode facilmente permanecer 12 anos no sistema, teria 12
anos de estudo, que não resultam em mais que 2 ou 3, mal e porcamente. A
miséria avassaladora da “progressão automática” que contamina o sistema de alto
a baixo começa com a proposta de alfabetização em até três anos, e que depois
não se completa, confundindo “idade certa” com “dose certa”. Naturalmente que
esta “alfabetização” vale apenas para os mais pobres; os outros tratam de
alfabetizar-se no pré-escolar. Segundo ANA, talvez metade se alfabetiza em três
anos; em alguns estados ainda faltam mais de 80%. É, pois, uma escola que
“sacaneia” o pobre flagrantemente.
Falando a verdade, não temos a escola de que o oprimido precisa;
temos um arremedo contraproducente. Mesmo assim a consideramos
constitucionalmente obrigatória e inclusiva. Achamos que, metendo deficientes,
índios, negros e outras “minorias” nesta arapuca, estamos lhes dando a chance
da vida para “se incluírem”. Coisas da “pátria educadora”, totalmente pelo
avesso. Insistimos que filhos de beneficiários do Bolsa-Família devem
frequentar escola - algo totalmente redundante - mas, ao final, sequer vale a
pena. Índio que se preza não aceitaria esta escola que, para usar expressão de
Popkewitz, é “efeito de poder” (2001) - sob um discurso fátuo de inclusão
manobra-se a exclusão mais abjeta. No entanto, uma das faces mais brilhantes da
proposta finlandesa foi garantir para a população em geral uma escola pública
(o sistema é exclusivamente público e gratuito), onde mais de 90% aprendem bem
- é “normal”, aprender; entre nós é exceção. Alfabetizar uma criança na
primeira hora virou enigma, missão impossível, tarefa insuperável, a ponto de
demorar três anos, para nunca mais se completar. Ficou normal que praticamente
ninguém aprenda matemática - só falta virar a marca registrada desta pátria
educadora extinguir matemática! Esta cena lembra o filme Titanic, onde se
mostra uma orquestra tocando furiosamente, enquanto o barco se afundava.
Atolado em dados que ele próprio produz, veementemente indicativos de que está
afundando, o MEC prefere continuar tocando sua charanga de sempre. Só sai daí
coisa requentada, velha, superada, porque, sob o peso de uma história
institucional decadente, tal qual a
escola, se reproduz.
A proposta das Federais esconde a mesma arapuca, considerada
“clássica”. Foram concebidas públicas e gratuitas para que “todos"
pudessem ter acesso - nada mais digno e justo. No entanto, foram assaltadas
pelos mais ricos, com alusão esperta de “mérito" – são eles que passam nos
melhores vestibulares, claro - a ponto de ser hoje típico botim, uma reserva de
mercado. Cursos de medicina de regiões mais pobres são ocupados
sistematicamente por “estrangeiros" que ocupam as vagas, porque os
“nativos" não conseguem concorrer. Em si, elas oferecem as “mesmas"
oportunidades, com os mesmos “exames”. Esconde-se, porém, que, se todos fazem o
mesmo exame, todos têm pontos de partida dissimilares, sobretudo a maioria tem
resultados muito inferiores. Os mais pobres terão de contentar-se com a oferta
privada, de nível inferior, e ainda pagar por ela. É a “justiça" de um
sistema de ensino intestinamente perverso.
II. NÃO APENAS OPORTUNIDADE IGUAL, MAS RESULTADOS SUPERIORES
Continuamos mantendo o discurso completamente capenga das “mesmas
oportunidades para todos”, a despeito das pesquisa que indicam ser insuficiente
flagrantemente (Boykin & Noguera, 2011). Os erros são palmares, porque as
políticas educacionais não são minimamente justas e honestas com as populações
que ficaram para trás. Ocorre que os oprimidos não precisam apenas das mesmas
oportunidades; precisam de oportunidades bem superiores, em particular
resultados frontalmente diferenciados. Tomando um exemplo do esporte: não cabe,
para fazer um competição de corrida de obstáculos, digamos, de 200 m, colocar
um jovem e um velho na mesma pista, com a mesma distância, com o mesmo
uniforme, com as mesmas regras – a oportunidade parece igual, mas os dois não
são. Esquecem-se as diferenças gritantes, que não permitem ao velho ter o mesmo
desempenho. Sempre cometemos esta barbaridade política quando, aplicando os
mesmos testes padronizados para todos, achamos estar fazendo justiça para
todos, ignorando que os pontos de partida são, em geral, abusivamente
diferentes. Temos esta perversidade nos vestibulares para as melhores
universidades do país – todos fazem a “mesma” prova, com as mesmas regras, mas
as condições de cada candidato são muito diferentes. Quem fez escola pública
rebaixada não pode ter a mesma condição de quem fez escola privada e vem com um
“cursinho” de ponta para a prova. Para cúmulo da perfídia, fala-se de “mérito”
– a prova, em si, testaria o mérito de cada estudante, mas esconde-se que o
determinante maior deste mérito, não é “mérito intelectual” (que poderíamos
certamente engolir), mas “mérito” socioeconômico e cultural (ou seja, “bolso”
familiar – superioridade socioeconômica em especial). Assim, tornou-se
comum que, em regiões menos desenvolvidas, o curso de medicina da Federal é
ocupado, por vezes, em mais de 80%, por gente de fora, que vem naturalmente bem
mais “preparada”. Mérito?
Então vamos combinar: os mais pobres precisam de “resultados
significativamente superiores”, não só das mesmas oportunidades. Pensava-se
nisso quando Darcy Ribeiro e Paulo Freire tocavam a ETI (CIEPs) no Rio de
Janeiro no começo dos 1990. Os resultados não foram os esperados e a
experiência acabou minguando. Retornou como força no governo Collor (CAICs),
com arquitetura própria, mas não vingou também. Retoma-se agora sob a
nomenclatura de Escola Integral, mas também com proposta totalmente desvirtuada
no programa Mais Educação, por exemplo, que estende uma escola péssima de
quatro horas para oito, ou seja, tornando duas vezes péssima. Como renitente ou
empedernido não se emenda, veio agora o Novo Mais Educação, com algumas firulas
novas, mas no mesmo “espírito” instrucionista vigente (Demo, 2016a). Não vou
repetir aqui dados sobre aprendizado adequado de matemática no país, em especial
no ensino médio (Demo, 2016b), que indicam estar matemática – sinceramente –
“em extinção”. Naturalmente, quem menos tem acesso ao aprendizado adequado de
matemática são os mais pobres, que são empurrados via progressão automática
para a vida sem preparação minimamente apropriada. Não se alfabetizam
minimamente, não aprendem nada na condição de autor, e terminam o curso
completamente fraudados, constitucionalmente.
Se aceitarmos o desafio de que os mais pobres precisam de
resultados significativamente superiores, ou seja, precisam aprender muito mais
e muito melhor, precisamente para terem oportunidades similares, a escola tem
de mudar radicalmente, deixando para trás a política atual completamente
alienada. Para contextualizar tamanho desafio – quase milagre – cumpre analisar
as condições concretas dos mais pobres quando chegam à escola pública.
Primeiro, comparativamente, abrigam um déficit humilhante em todos os sentidos:
i) não possuem em casa apoio suficiente, em parte porque os pais podem ser analfabetos
ou quase, ou também porque não conseguem acompanhar os filhos na escola, ou
também porque não têm interesse; enquanto isso o menino rico tem uma retaguarda
familiar quase sempre combativa a seu favor; os mais ricos podem matricular-se
em estabelecimentos privados, quase sempre de melhor desempenho (mesmo que o
Ideb de 2015 mostre que a escola privada seja a mais problemática,
pedagogicamente falando); ii) um dos déficits é o vocabulário que ele traz para
a escola – enquanto o menino rico em geral fala em casa um português mais
escorreito, o outro fala o linguajar popular, que, não sendo em nada
“inferior”, não é o “dominante” (Demo, 2010); é questão chave porque a fala
mais escorreita já introduz conotações da linguagem mais formal, abstrata,
analítica, modelar, fundamental para elaborar oportunidades mais definidas na
sociedade/economia do conhecimento; iii) o menino rico facilmente tem em casa
um cardápio razoável de apoios didáticos, como computador e internet,
enciclopédias, livros e revistas, jornais, provavelmente informa-se melhor via
TV, por exemplo (noticiários e informativos, shows ligados à pesquisa acadêmica
etc.); o menino pobre pode não ter nada disso, a não ser uma TV para ver novela
da Globo ou coisa parecida; iv) o menino rico pode ser mais facilmente “puxado”
pelos pais e ambiente familiar em conversas mais analíticas, em comportamentos
mais bem socializados, em comunicação mais cuidadosa; o menino pobre fica longe
disso, por conta de viver a vida no limite das possibilidades; v) o menino rico
facilmente tem apoio em termos de crescimento físico, desenvolvimento
intelectual e emocional, ambiente sanitário e higiênico etc.; aprende mais
facilmente a cuidar-se nesta parte; enquanto isso, o menino pobre pode não tem
qualquer condição de curtir estas dimensões por conta da pobreza, vivendo em
situação de carências extremadas, alimentando-se precariamente, não tendo
acompanhamento médico, pode sequer ter as vacinas em dia; vi) o menino rico
pode vivenciar ambiente de muita motivação positiva intelectual, emocional,
social e cultural (pode visitar museus científicos, participar de eventos
culturais importantes, como uma orquestra sinfônica, ou ir ao teatro, viajar
para o exterior etc.), enquanto o menino pobre não consegue elevar seu “capital”
cultural, por conta das misérias da vida.
Assim, este menino chega à escola precisando de “tudo”,
literalmente. Já isto indica que não pode ser a mesma escola, porque não tem
qualquer condição de encarar os atrasos clamorosos. Mas o desafio é bem concreto
e acerbo: o estudante começa com atraso astronômico e mesmo assim precisa
chegar na frente! Como? Podemos aqui mesmo desanimar, já, usando a metáfora do
esporte: não dá para chegar antes numa corrida de mil metros, quando um tem uma
dianteira de 500 m; sair com 500 m de atraso e pretender chegar na frete, há
que “voar” – a pé é que não dá! Embora pareça grotesco este cenário, é o real,
duríssimo. Vamos tomar analisar rapidamente uma iniciativa que, aparentemente,
queria enfrentar isso: o Pnaic. Ao inventar a “idade certa” para a
alfabetização escolar, o MEC tentou ser “realista” – os estudantes mais pobres
precisariam em média de três anos. Não seria difícil justificar isso, por conta
dos déficits que acabei de descrever preliminarmente. Sabemos, pelas avaliações
(ANA, principalmente) (Demo, 2015), porém, que é proposta inócua, teórica e
praticamente equivocada, contribuindo frontalmente para encalacrar os mais
pobres – se fôssemos usar a crítica de Popkewitz, Pnaic é típica política como
“efeito de poder”. Primeiro, esta “idade certa” só vale para os mais pobres; os
outros já começam no pré-escolar. Quando alguns defendem que “educação
científica” deveria começar no pré-escolar (com quatro anos de idade) (Linn
& Eylon, 2011), cabe perguntar se a idade estaria “errada”? Ridículo; para
o menino rico, toda idade serve, porque alfabetização nunca termina, se for bem
posta educacionalmente falando; só menino pobre tem prazo e que, por sinal,
nunca termina – segundo ANA, mais ou menos metade se alfabetiza após três anos;
em alguns estados, faltam ainda mais de 80%... Segundo, a preocupação seria com
“dose certa” – o que caberia trabalhar com uma criança de quatro anos, ou de
seis, e sobretudo como, pedagogicamente falando, o que pede um professor à
altura e que, entre nós, facilmente não existe. Assim, quem precisa de três
anos não é a criança pobre, é o alfabetizador “pobre”. Terceiro, visivelmente a
proposta oficial é coisa pobre para o pobre, algo que qualquer menino rico não
quer para si. Assim, ao invés de oferecer para o mais pobre um programa
significativamente superior, empurra-se uma carroça velha, porque pobre só
pode/deve andar de carroça velha. Não existe o compromisso de puxar para cima,
oferecer oportunidade verdadeiramente alternativa, superar déficits clamorosos,
garantir ambiente efetivo educacional. Ao contrário, é o mesmo esquema de
sempre, a mesma escola, o mesmo alfabetizador, a mesma pedagogia, a mesma
aula... Porcaria.
Permito-me contar uma experiência que tive em Belém em meados dos
1990, quando Hélio Gueiros era Prefeito e Therezinha Gueiros secretaria de
educação. Entre outras inovações, erigiu-se a Escola Bosque, com arquitetura
primorosa enfiada na floresta da Ilha de Mosqueiro, muito caprichada em termos
de equipamentos, espaços, locais de estudo, biblioteca etc. Tinha também a
função de ser a cabeça do sistema municipal de educação ambiental. Tomou-se o
cuidado de não cair na esparrela de oferecer ao pobre coisa pobre, tanto que se
conseguiu, com muito malabarismo do prefeito, salário diferenciado para os
professores. Na próxima eleição, ganhou o PT (prefeito Edmilson), que logo
estigmatizou a escola como elitista, resultando disso seu entupimento de
estudantes, ocupação dos espaços alternativos, degradação dos equipamentos etc.
Ao invés de erigir outras escolas desse porte e qualidade para outras
comunidades pobres, achou-se mais “justo” rebaixar a escola, já que pobre só
pode estudar em escola ruim. O mais pobre não é “puxado” para um escola que lhe
daria resultados superiores; ao contrário, a escola é degradada para caber na
pobreza. A Escola está lá, mas nunca vingou; é escola qualquer, aquela que cabe
aos mais pobres!
III. INCLUSÃO PELO AVESSO
Parece estranho que se diga ser inclusiva a escola que temos, mas é política pública típica. É
também obrigatória, pois imagina-se que estamos garantindo à população real
oportunidade de melhorar na vida. Esta pretensão está entre as mais ridículas
da nossa história, onde nunca conseguimos “universalizar” para cima, ou seja,
na visão de Vygotsky da zona do desenvolvimento proximal, facultar ao estudante
sempre novos desafios, para além do que já faz sozinho. Nossas
“universalizações” são tipicamente para baixo, como o SUS (quem pode, foge),
como Segurança Pública (quem pode, foge), escola pública (quem pode, foge). O
reverso, porém, vale a pleno vapor: quando alguma instituição pública detém
qualidade superior, mesmo sendo pública e gratuita, não vai para os mais
necessitados; é logo botim dos mais ricos (Federais, por exemplo). Isto denota
que nunca soubemos trabalhar a noção de inclusão, mesmo em partidos que se
querem de esquerda, que não foram além do Bolsa-Família: embora seja programa
altaneiro, pratica uma inclusão marginal, mantendo o pobre dentro, mas lá bem
na margem, que, diga-se de passagem, “é seu lugar”! Continua tendo seu destino
em mãos alheias, embora tenha agora um “opressor” provavelmente mais benigno.
Quando usamos (em vão) no nome de Paulo Freire e sobretudo quando
aludimos a necessidade de o oprimido se emancipar (“lendo a realidade”),
cometemos quase sempre curtos-circuitos toscos, entre eles:
a) emancipar exige protagonismo de quem pretende se emancipar;
não pode ser apenas beneficiário (como é no Bolsa-Família), porque emancipação
“concedida”, “dada”, “monitorada”, ou “imposta” é fraude (Mezirow &
Associates, 2000. Taylor & Cranton, 2012); “ler a realidade” implica a
competência de tomar o destino em suas mãos (até onde possível), destruir a
opressão e montar rota alternativa em condições democráticas e republicanas;
b) não faz sentido incluir-se na margem, ou seja, a inclusão
feita adequadamente acarreta mudanças estruturais no sistema, que sempre
evitamos – precisamente o Bolsa-Família acomoda o pobre, sem pedir mudanças estruturais;
entre as mudanças estruturais mais profundas está a necessidade de resultados
superiores na escola em favor dos oprimidos; é uma mentira deslavada que nossa
escola seja inclusiva, como é dizer que o Bolsa-Família sana a questão da
pobreza ou que, de repente, a maioria dos pobres virou classe média ou coisa
parecida;
c) esta escola que temos não “inclui”, porque seu desempenho é
desastroso como regra, e decrescente; é um acinte achar que os índios, entrando
para esta escola, tenham uma oportunidade fundamental de vida, a ponto de ser
“obrigatória”; se o índio soubesse “ler a realidade”, recusaria esta escola;
retomando a velha sociologia da educação, o sistema atual de ensino confirma/exacerba
ostensivamente as desigualdades sociais (Bourdieu & Passeron, 1975) ou
representa nitidamente o questionamento clássico de Frigotto: a “produtividade
da escola improdutiva” (1989); para lembrar uma expressão forte de Au (2009): a
escola é “desigual em seu design”;
d) o erro mais grosseiro, entretanto, é continuar apostando neste
sistema de ensino totalmente falido, onde aprendizagem é excepcional, se tanto;
empurramos a população para uma escola que lhe vale sobretudo como cadafalso,
onde vai se esfolar viva, para, após 12 anos de escola, terminar o ensino médio
sem saber matemática; ao invés de ter 12 anos de estudo, tem alguns, mal e
porcamente; este estudante foi “desincluído”, ou incluído mais ainda na miséria
em que sempre esteve.
Se estamos realmente interessados em incluir o oprimido,
precisamos tomar providências à altura do diagnóstico que acena com um sistema
completamente decadente e injusto escolar, até mesmo na esfera privada (como
diz o Ideb de 2015) (Demo, 2016c) e buscar condições de oferta extremamente
alternativa, muitíssimo além de programas como Bolsa-Família ou Mais Educação.
Falando a sério, como daríamos conta de uma aluno xucro (no sentido de seu
despreparo quando chega no primeiro dia à escola, vindo da periferia mais
pobre)? Primeiro, o estudante precisa ser tomado a sério, em todo seu
“despreparo”. Um exemplo típico é uma escola para “refugiados” na Finlândia – se
a escola não tomar a sério o refugiado, digamos um afegão pobre, fingindo que é
um “finlandês”, não pode dar certo! Esta escola precisa estar à altura da
necessidade do afegão pobre, começando do começo, do chão em que a criança
está. Mas isto é apenas o começo. O mais duro é, partindo de condições tão
adversas, garantir ao afegão a oportunidade de resultados superiores, para que
seja incluído, não na margem como pária, mas no centro do sistema, onde
deveriam estar todos, se não mentíssemos tanto!
Assim, de que precisa um índio, um deficiente? Não é dessa
escola. Esta escola é feita para dar aula, fazer prova e engolir conteúdo
repassado. Não tem nada a ver com as necessidades reais dos oprimidos; ao
contrário, é sua ruína. Se dizemos que pobre, entrando no sistema prisional,
faz pós-graduação no crime, não é diferente do pobre que vai para nossa escola:
faz pós em analfabetismo. Depois nos admiramos com as desigualdades ignominiosas
que nos cercam na república, por exemplo, com as aposentadorias predatórias dos
funcionários públicos, dos salários de juízes (quase todos acima do teto, porque
se julgam acima da lei), com a farra dos políticos, dos supersalários públicos
que descarados acham “meritórios”, etc.
Tudo se planta e replanta numa escola abjeta, onde o excluído tem de aprender
que nunca vai passar de excluído! A escola sempre teve este lado problemático,
como mostra a “sociologia clássica da educação”, em alguns países assumido
ostensivamente como nos Estados Unidos, quando se usou (e usa) a escola pública
para “domesticar” os imigrantes – a função maior não era aprender,
emancipar-se, mas “socializar-se”. Educar
implica também, nas entrelinhas, ou nas linhas todas, manipular comportamentos
alheios, que é o que fazemos deslavadamente quando metemos índios ou
deficientes nesta escola ensandecida. Foucault coloca escola no sistema
prisional, não por acaso... (1977).
A noção de Escola Integral (de tempo integral) sempre teve alguma
pretensão nesta direção, por mais que nunca tenha vingado minimamente. Deixar o
menino pobre na escola poderia ter muitos efeitos benéficos, também
assistenciais (melhor ficar na escola que perdido na rua), poderia receber
atenção redobrada, poderia habituar-se a uma ambiente positivo de aprendizagem,
leitura, estudo, pesquisa, elaboração... Como, porém, não temos cabeça bem-feita
(Morin, 2003), quando aumentamos o ensino fundamental de oito para nove anos,
apenas impusemos aos estudantes mais um ano inútil – observando os anos finais,
os dados são tristes. Não partimos de um diagnóstico decente, mas de
“princípios” caducos didáticos que apostam cegamente em tempo maior para nada
na escola. Conseguimos piorar... Haja “inclusão”!
CONCLUSÃO
A maior pieguice da atual política educacional é prometer
mudanças no mesmo sistema de ensino, conservando o mesmo professor, a mesma
escola, a mesma aula, a mesma pedagogia... Os dados indicam veementemente que
estamos nos suicidando, mas, como no Titanic, a orquestra toca ainda mais
estridente para esquecer do colapso iminente. O país vai ficando para trás,
lembrando de um programa americano chamado “No
Child Left Behind Act” (Nenhuma criança deixada para trás), formulado por
W. Bush (2001) – voltado para restaurar as oportunidades que estudantes
americanos não alcançavam em testes internacionais (em especial no PISA). Mas
cometeu o mesmo erro crasso recorrente: imaginou que o mesmo sistema de ensino
que exclui as maiorias poderia, num gesto de arrependimento tocante, fazer a
inclusão, apelando, entre outras coisas, para privatizações de escolas públicas
(Lubienski & Lubienski, 2013. Ravitch, 2013)... O questionamento da escola
pública – certamente sempre cabível e mesmo necessário – não pode redundar em
seu fechamento, mas não sua reinvenção, porque a população só pode frequentar
escola pública gratuita. O Ideb mostra que a escola mais duvidosa hoje é a
privada. A “criança deixada para trás” precisa de outra escola.
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